terça-feira, 22 de janeiro de 2013

RECADO AO SENHOR 903



A contemporaneidade nos leva a uma intensa necessidade de superarmos o individualismo que domina, que desumaniza e que nos faz 'menos gente'...

Rubem Braga, um dos melhores cronistas brasileiros, escreveu a crônica Recado ao senhor 903, no ano de 1945. O texto já pincelava a problemática, embora naquela época o homem não vivesse as relações virtuais.

O dilema dos isolamentos, das restritas comunicações cara a cara, da falta de tempo de vislumbrar o luar, o ocaso, as coisas simples da vida, tendem a aumentar e reflito na aridez, na desertificação que se apodera dos corações humanos...

Lá no fundinho do meu coração, abraçar, beijar, tocar, serão eternamente verbos superiores aos gastos verbos compartilhar e curtir.

Deixo-os o texto na íntegra e espero que reflitam no verdadeiro sentido das relações pessoais.

Abração e não deixe que o isolamento permeie o seu cotidiano



RECADO AO SENHOR 903

Vizinho, quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal - devia ser meia-noite - e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou a inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a lei e a política. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno, e é possível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005 a oeste pelo 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 - fiel senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceridade, adotar depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão, ao meu número), será convidado a se retirar às 21:45 h, e explicarei o 903 precisa repousar das 22 às 7, pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar 0 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinha está toda enumerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seu algarismo. Peço-lhes desculpa - e prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse "vizinho, são 3 horas da manhã e ouvi música na tua casa. Aqui estou". E o outro respondesse: "Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela".

E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.

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