Recordemos, em resumo, a história da peça. A tempestade derruba uma
árvore e Nicolau, o burro, é atingido na cabeça por um dos galhos. Ele adoece e
piora. Seu dono, desesperado, faz uma promessa a Iansã (Santa Bárbara). Nicolau
se recupera e Zé, carregando uma pesada cruz de madeira por sete léguas, se
dirige à cidade para pagar a promessa. Antes de o sol raiar, lá está ele e
Rosa, sua esposa, defronte a Igreja de Santa Bárbara. Ao amanhecer, o padre
Olavo se dirige até ele, ouve toda a história e lhe nega a permissão para
adentrar na igreja com a cruz, impedindo-o de cumprir a promessa plenamente.
No diálogo entre o Padre Olavo e Zé-do-burro fica explícito a
intolerância do representante da Igreja Católica em relação às crendices
populares e à religião de origem africana. Ao narrar os acontecimentos que
motivaram a promessa, a certa altura Zé se refere às rezas do Preto Zeferino. O
padre questiona e ele, num tom de desculpas, tenta se explicar:
ZÉ – Seu vigário me desculpe, mas
eu tentei de tudo. Preto Zeferino é rezador afamado na minha zona: sarna de
cachorro, bicheira de animal, peste de gado, tudo isso ele cura com duas rezas
e três rabiscos no chão. Todo o mundo diz. E eu mesmo, uma vez estava com uma
dor de cabeça danada, que não havia meio de passar. Chamei Preto Zeferino, ele
disse que eu estava com o Sol dentro da cabeça. Botou uma toalha molhada na
minha testa, e derramou uma garrafa d’água, rezou uma oração, o sol saiu e eu
fiquei bom.
O Padre repreende-o:
PADRE – Você fez mal, meu filho. Essas
rezas são orações do demo.
Zé – Do demo, não senhor.
PADRE – Do demo, sim. Você não
soube distinguir o bem do mal. Todo homem é assim. Vive atrás do milagre em vez
de viver atrás de Deus. E não sabe se caminha para o céu ou para o inferno.
ZÉ – Para o inferno? Como pode
ser, Padre, se a oração fala de Deus? (Recita.) “Deus fez o
Sol, Deus fez a luz, Deus fez toda a claridade do Universo grandioso. Com Sua
Graça eu te benzo, te curo. Vai-te Sol, da cabeça desta criatura para as ondas
do Mar Sagrado, com os santos poderes do Padre, do Filho e do Espírito Santo.”
Depois rezou um Padre Nosso e a dor de cabeça sumiu no mesmo instante.
SACRISTÃO – Incrível!
PADRE – Meu filho, esse
homem era um feiticeiro.
ZÉ – Como feiticeiro, se a reza é
pra curar?
PADRE – Não é para curar, é para
tentar. E você caiu na tentação.
ZÉ – Bem, eu só sei que fiquei
bom.
O Padre Olavo fala com a autoridade que a Igreja lhe confere. É enquanto
tal que demoniza a crença popular. Zé-do-burro, um homem simples, um homem do
campo, expressa em sua simplicidade a perplexidade diante das verdades que
o padre pronuncia. Mas seus argumentos, embora simples, são comprovados pelos
fatos da vida. Ao padre só resta a demonização e a afirmação de que o homem
caiu em tentação.
Não obstante, Zé-do-burro parece não se abalar com o discurso
condenatório da autoridade eclesial. Continuando o relato, conta que as rezas
não surtiram efeito para o burro Nicolau. Então, a comadre Miúda sugeriu
que ele fosse ao “candomblé de Maria de Iansã”. O padre, que até então
procurava conter a sua indignação, exclama: “Candomblé?!” Zé responde:
ZÉ – Sim, é um candomblé que tem
duas léguas adiante da minha roça. (Com a consciência de quem cometeu
uma falha, mas não muito grave.) Eu sei que seu Vigário vai ralhar comigo.
Eu também nunca fui muito de frequentar o terreiro de candomblé. Mas o pobre
Nicolau estava morrendo. Não custava tentar. Se não fizessem bem, mal
não fazia. E eu fui. Contei pra Mãe-de-Santo o meu caso. Ela disse que era
mesmo com Iansã, dona dos raios e das trovoadas. Iansã tinha ferido
Nicolau, pra ela eu devia fazer uma obrigação, quer dizer: uma promessa. Mas
tinha que ser uma promessa bem grande, porque Iansã, que tinha ferido Nicolau
com um raio, não ia voltar atrás por qualquer bobagem. E eu me lembrei então
que Iansã é Santa Bárbara e prometi que se Nicolau ficasse bom eu carregava uma
cruz de madeira de minha roça até a Igreja dela, no dia de sua festa, uma cruz
tão pesada como a de Cristo.
PADRE – (Como se anotasse
as palavras.) Tão pesada como a de Cristo. O senhor prometeu isso a...
ZÉ – A Santa Bárbara.
PADRE – A Iansã!
ZÉ – É a mesma coisa...
PADRE – (Grita.) Não
é mesma coisa! (Controla-se.) Mas continue...
Zé-do-burro também prometeu, e cumpriu, dividir seu sítio com os
lavradores mais pobres. Isto será utilizado pelo esperto repórter e será um
ingrediente a mais no emaranhado de incompreensões de que será vítima. Porém, o
seu maior desafio é convencer o padre a deixá-lo entrar na igreja com a cruz e,
assim, pagar a promessa. Afinal, a graça foi alcançada e o burro Nicolau foi
curado. Para o Zé, foi um milagre. “Só eu e ele [o burro] sabíamos do milagre.
(Como que retificando.) Eu, ele e Santa Bárbara”, frisa Zé. (p.46)
Em sua simplicidade Zé-do-burro não atenta que seus argumentos irritam
ainda mais o vigário. Em sua maneira de conceber a religiosidade, não há
qualquer contradição em acreditar em Deus, Santa Bárbara e buscar o socorro da
divindade do candomblé. Isto é inconcebível para o vigário:
PADRE – (Procurando,
inicialmente, controlar-se.) Em primeiro lugar, mesmo admitindo a
intervenção de Santa Bárbara, não se trataria de um milagre, mas apenas de uma
graça. O burro podia ter-se curado sem intervenção divina.
ZÉ – Como, Padre, se ele sarou de
um dia pro outro...
PADRE – (Como se não o
ouvisse). E além disso, Santa Bárbara se tivesse de lhe conceder uma graça,
não iria fazê-lo num terreiro de candomblé!
ZÉ – É que na capela do meu
povoado não tem uma imagem de Santa Bárbara. Mas no candomblé tem uma imagem de
Iansã, que é Santa Bárbara...
PADRE – (Explodindo.) Não
é Santa Bárbara! Santa Bárbara é uma santa católica. O senhor foi a um
ritual fetichista. Invocou uma falsa divindade e foi a ela que
prometeu esse sacrifício!
ZÉ – Não, Padre, foi a Santa
Bárbara. Foi até a igreja de Santa Bárbara que prometi vir com a minha cruz. E
é diante do altar que vou cair de joelhos daqui a pouco, pra agradecer o que
ela fez por mim! (p. 46)
Zé-do-burro ainda acredita que o padre, apesar de ralhar e condenar a
sua atitude, permitirá que cumpra a promessa. Mas a resposta do vigário será
clara, dura e definitiva:
ZÉ – (Em desespero). Mas
Padre, eu prometi levar a cruz até o altar-mor! Preciso cumprir a minha
promessa!
PADRE – Fizesse-a então numa
igreja. Ou em qualquer parte, menos num antro de feitiçaria.
ZÉ – Eu já expliquei...
PADRE – Não se pode servir a dois
senhores, a Deus e ao Diabo!
ZÉ – Padre...
PADRE – Um ritual pagão, que
começou num terreiro de candomblé, não pode terminar na nave de uma igreja!
ZÉ – Mas Padre, a igreja...
PADRE – A igreja é a casa de
Deus. Candomblé é o culto do Diabo!
ZÉ – Padre, eu não andei sete
léguas para voltar daqui. O senhor não pode impedir a minha entrada. A igreja
não é sua, é de Deus.
PADRE – Vai desrespeitar a minha
autoridade?
ZÉ – Padre, entre o senhor e
Santa Bárbara, eu fico com Santa Bárbara.
O padre se retira e ordena ao sacristão que mantenha a porta principal
da igreja fechada. Os fiéis devem usar a porta da sacristia, pela qual não é
possível entrar com a cruz trazida por Zé-do-burro. Este fica no meio da praça,
tenso, perplexo e revoltado.
O discurso do padre se fundamenta numa concepção de bem e mal que não
corresponde à tradição do candomblé. O dualismo bem/mal é estranho à divindade
africana. O candomblé não faz distinção entre o bem e o mal, como o faz a
tradição judaico-cristã. O candomblé opera num contexto ético diferenciado.
Como esclarece Prandi :
"A diferença entre o bem e o mal depende basicamente da relação
entre o seguidor e seu deus pessoal, o orixá. Não há um sistema demoralidade referido
ao bem-estar da coletividade humana, pautando-se o que é certo ou errado na
relação entre cada indivíduo e seu orixá particular. A base moral está inscrita
no cotidiano pelo catolicismo ou pelos valores não religiosos da
sociedade."
Na medida em que a religião afro é submetida à ótica judaico-cristã
torna-se difícil compreender os seus ritos, simbolismos e divindades. A
simplificação dual mal/bem na visão, por exemplo, do Padre Olavo, induz à
identificação da sua religião como a “do bem” e a outra é identificada ao
maligno. A demonização do outro, é claro, também rende dividendos importantes
no mercado dos bens simbólicos religiosos. E, para o sectário e intolerante, é
fator de reafirmação da convicção religiosa.
Essa demonização não se restringe ao discurso do Padre Olavo, mas também
se manifesta entre os fiéis. Na peça, podemos observar este fator através da
personagem Beata. É ilustrativo o diálogo que ela mantém com Minha Tia,
personagem devota de Iansã:
MINHA TIA – (Oferece.) Caruru,
Iaiá?
BEATA – (Pará junto a
ela.) Quê?
MINHA TIA - Caruru de Iansã...
BEATA – (Como se ouvisse
o nome do Diabo.) Iansã?! E que é que eu tenho com dona Iansã? Sou
católica apostólica romana, não acredito em bruxarias!
MINHA TIA – Desculpe Iaiá, mas
Iansã e Santa Bárbara não é a mesma coisa?
BEATA – Não é não senhora! Santa
Bárbara é uma santa. E Iansã é... coisa do candomblé, que Deus me perdoe!
(Benze-se repetidas vezes e sai.)
Padre Olavo permanece intransigente, Zé também. A inflexibilidade do
primeiro se vincula à concepção sobre a proeminência da religião católica e a
demonização da religião afro-brasileira. Ele está convicto de que defende os
valores cristãos, a igreja católica e a divindade que acredita. A convicção em
si não é boa ou má, mas pode causar efeitos traumatizantes em relação ao
“outro”, isto é, àquele que não partilha de tal convicção com a mesma
intensidade.
Zé também acredita em Deus, se declara católico e respeita a igreja. Mas
não pode recuar, pois seria descumprir a promessa – a qual, aliás, é para Santa
Bárbara; ele se mostra mais tolerante em relação ao candomblé, na medida em que
reconhece a identificação entre esta e Iansã. Zé não pode aceitar o discurso demonizado
do padre e nem compreender a relutância deste em negar seu direito de pagar a promessa
feita. E, sobretudo, seus valores morais, próprios do homem do campo naquele
contexto sócio histórico, não permitem-no aceitar outra alternativa que o
impeça de cumprir a palavra dada à santa. São dois mundos completamente
diferentes que não podem confluir para uma solução intermediária. Nesta
perspectiva, e considerando-se a sinceridade da convicção religiosa de ambos, o
padre e o pagador de promessas, é quase impossível sair do impasse. Diante da
fé absoluta não há saída possível e, no limite, todos têm razão.
Diante do impasse, torna-se necessário a interferência da autoridade
superior. Entra em cena o Monsenhor. Sua intervenção pretende demonstrar o
quanto a igreja é tolerante. Diante do público que acompanha a contenda entre o
padre e o pagador de promessas, ele afirma que foi designado pelo superior
hierárquico para cuidar do caso e “dar uma prova de tolerância da igreja para
com aqueles que se desviam dos cânones sagrados...” (86). A tolerância é
delimitada por aquilo que o Monsenhor acredita ser o cânone, a verdade da
igreja. O diálogo a seguir explicita seus limites:
ZÉ – (Interrompe). Padre, eu
sou católico. Não entendo muita coisa do que dizem, mas queria que o senhor
entendesse que eu sou católico. Pode ser que eu tenha errado, mas sou católico.
MONSENHOR – Pois bem. Vamos lhe
dar uma oportunidade. Se é católico, renegue todos os atos que praticou
por inspiração do Diabo e volte ao seio da Santa Madre Igreja.
ZÉ – (Sem entender). Como,
Padre?
MONSENHOR – Abjure a
promessa que fez, reconheça que foi feita ao Demônio, atire fora essa cruz
e venha, sozinho, pedir perdão a Deus.
ZÉ – (Cai num terrível
conflito de consciência). O senhor acha mesmo que eu devia fazer
isso?!
MONSENHOR – É a sua única
maneira de salvar-se. A igreja católica concede a nós, sacerdotes, o
direito de trocar uma promessa por outra.
ROSA – (Incitando-o a
ceder). Zé... talvez fosse melhor...
ZÉ – (Angustiado). Mas
Rosa... se eu faço isso, estou faltando à minha promessa. Seja
Iansã, seja Santa Bárbara, estou faltando...
MONSENHOR – Com a autoridade de
que estou investido, eu liberto dessa promessa, já disse. Venha fazer outra.
PADRE – Monsenhor está dando uma
prova de tolerância cristã. Resta você escolher entre a tolerância da
igreja e a sua própria intransigência.
ZÉ – (Pausa). O
senhor me liberta... mas não foi ao senhor que fiz a promessa, foi a Santa
Bárbara. E quem me garante que como castigo, quando eu voltar pra minha roça
não vou encontrar meu burro morto.
O Monsenhor, apesar de parecer tolerante, reproduz o discurso do Padre
Olavo. Ele procura persuadir o outro de que o único caminho possível é aceitar
e se submeter. Zé vê-se diante do dilema de renegar a promessa e, assim, em sua
forma de ver a relação com a divindade, colocar a vida do burro amado em risco.
A intermediação do Monsenhor se faz na perspectiva formal e dogmática
manifestada pelo padre Olavo. O Monsenhor também parte do princípio de que Zé
cometeu uma heresia e a igreja não pode ser condescendente. Sua proposta também
se mostra inviável, pois se choca com a concepção religiosa e de mundo do
Zé-do-burro. A inflexibilidade de Zé-do-burro, na análise de Anatol Rosenfeld,
“decorre da defesa das convicções profundas, ligadas aos padrões arcaicos do
sertão”. Segundo Rosenfeld:
“A religiosidade arcaica e o
ingênuo sincretismo de Zé, para quem Iansã e Santa Bárbara, o terreiro e a
Igreja, tendem a confundir-se, se chocam inevitavelmente com o formalismo
dogmático do padre que, ademais, não pode admitir a promoção do burro a ente
digno de promessas”.
Rosenfeld mostra-se transigente em relação à Igreja, a qual teria
atenuado a sua postura a partir da intervenção do Monsenhor. Parece-nos que a
tolerância deste apenas confirma a intolerância já explicitada pelo Padre
Olavo. Se para o analista “ambos têm razão; mas ambos pecam pelo excesso”, ele
concorda que Zé-do-burro.
“não pode renunciar sem renunciar
à sua dignidade e, portanto, à sua própria substância humana que se afirma no
cumprimento do imperativo, para ele absoluto, contra as resistências dos outros
e mesmo contra as resistências do impulso pessoal de auto conservação, que
deveria impor-lhe o resguardo não só da própria vida, mas, sobretudo da honra
de marido ibero-americano, em face do desencaminhamento da mulher pela cidade”.
Zé-do-burro termina por angariar a simpatia. Ele representa os valores
morais íntegros, ainda que ingênuos, é o Davi contra Golias, ou seja, um
indivíduo que, em sua simplicidade e sem outros recursos senão o próprio
argumento e a sua determinação em pagar a promessa, enfrenta uma poderosa
organização religiosa, “munida de todos os argumentos e de toda a lucidez
racional”. Rosenfeld demonstra, então, que a atitude da igreja se revelou aquém
do necessário e do que se poderia esperar:
“Mesmo buscando a conciliação,
mesmo provida pelo autor de razões convincentes, ela não parece fazer jus às
expectativas de sabedoria, caridade e tolerância em face do indivíduo simples,
puro e frágil, no seu desespero solitário e na sua fé ingênua”. As
próprias concessões acabam confirmando a intolerância que, na palavra
de Sábato Magaldi, se erige na peça “em símbolo da tirania de qualquer sistema
organizado contra o indivíduo desprotegido e só”.
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